Enfim, chegou o dia da capital paranaense receber a primeira parte da turnê “Celebrating Life Through Death”, a turnê de despedida do Sepultura. E os curitibanos não fizeram feio, entregaram tudo e mais um pouco, esquentando a temperatura dentro da Live Curitiba em um dia de frio extremo na capital. Frio esse que fez o público chegar acanhado e apenas perto da abertura da casa, mas que em pouco tempo já começava a encher os corredores à espera de um bom lugar para acompanhar os 40 anos da banda.
Foto: @paulo.o.borges da @tocaculturalcuritiba
Ao adentrar na Live, o público se depara com um palco um tanto quanto apertado, com duas estruturas enormes nos lados, algo parecido como púlpitos altos. Após duas horas de acomodação, o show da vestígios de começar no horário exato, com uma pontualidade britânica. É o som de “Polícia” dos Titãs que anuncia a chegada de um dos maiores expoentes do cenário internacional. Quando a música se encerra, o motivo do palco aparentar pequeno se revela: há telões por toda parte!
Uma tape começa a tocar com uma sonoplastia de alguns momentos importantes da banda. As estruturas, antes mencionadas no palco, são como pequenas torres com telões na face e no lado voltado para o palco, com canhões de luz no topo. Ao todo são 8 tipos de telões espalhados, uma produção digna do tamanho da banda, se assemelhando com estruturas como as do palco montado na passagem do Metallica em solo brasileiro.
A tape se encerra com uma clássica introdução de batimentos cardíacos captados em uma ultrassonografia do primeiro filho do ex-vocalista, Max Cavalera. Essa é a introdução do álbum de 1993, Chaos A.D. Aqui já se mostrava que a banda não vinha pra brincadeira. São três músicas em sequência, três dos maiores clássicos desse mesmo álbum. “Refuse/Resist”, faixa que abre a bolacha, é a encarregada de fazer o aquecimento do público para as próximas duas horas da última dança da banda em solo paranaense. Um baita começo! Particularmente, a preferida desse quem vos escreve. Em seguida é a vez de “Territory”, fazendo a capa de Chaos A.D ser estampada em alguns telões. “Slave New World”, com o tempo mais acelerado do que a versão de estúdio, está encarregada de finalizar a abertura que demonstra ser um verdadeiro soco na cara do público, no bom sentido, claro. Agora sim, abertura concluída, público aquecido, pausa para as apresentações de Derrick e Andreas e conversas sobre como seria o resto da noite. A festa já estava montada!
“Phantom Self” do álbum Machine Messiah de 2017 é anunciada por Derrick. No decorrer da música, os telões se mostram ser de uma extrema qualidade, pois a nitidez das mesma eram absurdas, com vídeos temáticos sobre a música (fato esse que se repetiria em várias outras músicas), a resolução altíssima e a bela montagem fizeram ser um show à parte na estética visual da apresentação. Sobre a música em si, ficou notável que uma boa parcela do público não é familiarizado com as novas músicas da banda, principalmente as lançadas nas últimas duas décadas (com exceção de A-Lex de 2009, que não teve nenhuma música representada no show). Foi possível notar que, mesmo com a casa completamente lotada, apenas uma dúzia de pessoas demonstravam realmente saber e responder fisicamente aos estímulos dessas músicas. Tanto que ainda em “Phantom Self” é possível ver o público completamente parado (à exceção dessa mesma dúzia de pessoas) enquanto a banda executava a faixa. Mas esse foi o único momento que o público ficou realmente aquém do que o Sepultura merecia, felizmente.
Foto: @paulo.o.borges da @tocaculturalcuritiba
“Dusted” (Roots, 1996) e “Attitude” (Against, 1998) foram as responsáveis por criarem no público o senso de se entregar ao show, independente se soubessem ou não as músicas ou as letras. Foi como se o pessoal presente se lembrasse que aquele era a despedida da banda que levou o nome do Brasil para os gringos, era a hora de retribuir o favor. Em “Dusted” foram se criando os primeiros moshs, três deles, ainda que meio sem jeito, mas em “Attitude” elas já estavam mais soltas. Detalhe curioso para a pausa que o mosh fez perto do terço final da música pois aparentemente alguém tinha perdido algo no meio da roda, pessoas olhando para o chão, lanternas de celulares, mas tudo certo, deu tempo de voltar pra encerar a música.
Inclusive esse sentimento de companheirismo se estendeu para a faixa seguinte. “Kairos”, segunda faixa do álbum de mesmo nome, lançado em 2011, é uma daquelas músicas que se percebem que não são todos que a conhecem a fundo, mas aqui entra o novo comportamento antes percebido, a de que, independente se é famosa/clássica ou não, a entrega ia ser total e sempre de maneira crescente. Enquanto isso no palco, a banda também percebe que o público vai jogar junto e os destaques individuais começam a aparecer. O novato da banda, o baterista Greyson Nekrutman, começa a mostrar porque é um prodígio das baquetas com seus 21 anos. Ao final de “Kairos” já começavam a surgir os primeiros gritos para o batera. E se lembra do companheirismo? O público já começava a se emocionar e pessoas já saíam abraçadas das rodas antes mesmo de vir “Means to an End”. A faixa, que é single do último álbum, Quadra (2020), fez Andreas apresentar, de forma oficial para os presentes, o substituto do ex-baterista Eloy Casagrande. Esse último saiu de forma imprevisível do Sepultura, faltando apenas duas semanas para começar a derradeira turnê, fato esse que acabou irritando o próprio Andreas, o fazendo desabafar contra o ex-companheiro nas redes sociais. Mas a presença de Eloy já não fazia mais falta, pois o novato norte-americano já estava nos braços da galera, com extremo mérito.
Voltando ao show, a curta e veloz “Cut-Throat” do Roots, mantém o povo animado mas sem muito destaque. “Guardians of the Earth” é mais uma do último álbum e mostra a versatilidade e o feeling de Andreas. O começo mais calmo, no violão e a pegada mais progressiva da música cria uma atmosfera mais filosófica, sentido até pelo o público, onde pode se perceber alguns baseados sendo acesos para entrar melhor no clima.
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Após a fumaça abaixar, a próxima música vem de um álbum considerado por alguns como o primeiro bom álbum com Derrick Green, com o mesmo já bem adaptado ao restante da banda (após a saída em 1996 de um dos fundadores da banda, o ex-vocal Max). “Mind War” mostra um Derrick até mais solto no palco, é notável que o americano demonstra ter um carinho por essa música. Não é novidade para ninguém que Derrick não tem uma performance de palco tão explosiva, e que até nem faz tanta falta, pois com seus quase 2 metros de altura e seu porte físico, a simples presença do vocalista no palco é onipotente. Mas “Mind War” faz Derrick entregar uma performance de presença mais destacada.
Do ótimo álbum conceitual de 2006, Dante XXI, inspirado no poema de Dante Alighieri, A Divina Comédia, apenas uma música aparece na setlist. Esse mesmo álbum, que a poucos dias completou 18 anos, fez o público das redes sociais pedirem uma música que foi single e recebeu um clipe, inclusive muito assistido em minha adolescência. “Convited In Life” é daquelas músicas que faz você se perguntar o porque que ela não entrou para a setlist. Ao invés disso, foi escolhida a música “False” e assim que ela começa a resposta para o questionamento anterior é prontamente respondida. “False” funciona muito bem ao vivo, com sua letra passando nos telões, ela faz a roda se intensificar entre a galera, se mostrando até então, a música com o maior mosh da noite, inclusive fazendo o público se espremer em uma Live Curitiba abarrotada (palavras de Andreas) para fazer um imenso wall of death, o primeiro de muitos que viriam em sequência. Qual música estava faltando mesmo? Um detalhe importante a se notar sobre o Dante XXI, esse foi o último álbum do baterista fundador Igor Cavalera, encerrando-se assim, a história e passagem dos irmãos Cavalera. História essa que se confunde com a própria história do Sepultura.
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“Choke” do álbum de estreia de Derrick, Against de 1998, é a próxima. Foi simplesmente brutal. A esse ponto, não existia mais um mundo onde o público curitibano deixaria de se entregar. Tal atitude foi notada por Andreas, mas ao invés de simplesmente se conformar com a belíssima presença do público, o guitarrista, que também estava entregando tudo, decidiu incitar os presentes a criarem uma roda maior ainda. Dito e feito! Vinda diretamente de 1987, do álbum Schizophrenia (o primeiro a contar com Andreas) veio “Escape to the Void”. Aqui foi onde o filho chora e a mãe não vê. Uma brutalidade e violência gratuita se formou nas rodas daquela modesta casa de shows. Se um dia fez frio em Curitiba, ninguém ali dentro se lembrava mais. Até quem não entrou na roda estava envolto de calor e suor. O destaque aqui é total do entrosamento de Paulo Jr. com Andreas, mas voltaremos a falar sobre isso mais à frente
Se teve hora da pancadaria, também teve a hora dos descanso. “Kaowas” (Chaos A.D) foi a única folga da noite, o momento para juntar os feridos. Com Derrick e outros convidados fazendo uma percussão tribal em surdões. Andreas fazia uma jam com um violão, onde até simulou o som de berimbau presente na faixa em estúdio. Um belo momento para se recuperar o fôlego.
Após todos recuperados, é hora de voltarmos aos trabalhos. E nada melhor que a música que serviu de nome para homenagear os fãs da banda. “Sepulnation” do álbum Nation de 2001, é muitas vezes criticado (junto com Against), mas é consenso geral que “Sepulnation” não se aplica a essa regra. A casa voltou a ficar pequena com as novas rodas e walls of death que tomavam conta do ambiente.
Agora, uma música que muitas vezes é subestimada no meio de tanto clássico presente em Chaos A.D. é “Biotech Is Godzilla”. Porém, assim como “False”, ela funciona muitíssimo bem ao vivo. Com sua condução em um 2/2 na caixa da bateria, é o ritmo ideal para se criar a maior roda da noite. E assim o fez, só parando para mais um momento de alguém perdendo algo na roda, dessa vez um relógio, aparentemente.
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A próxima música foi uma que, particularmente, se aguardava bastante. A belíssima “Agony of Defeat” consegue ser ainda mais bela presencialmente. Aqui vale um destaque importantíssimo ao Derrick. Se um dia alguém falou que ele não cantava bem, hoje isso caiu por terra. A performance vocal dele é extremamente fiel ao estúdio. A música consegue explorar bem a extensão vocal do frontman. Vocais limpos, drives poderosos e um berro final antológico, misturando isso com a atmosfera épica que a música apresenta com tapes de orquestra e corais ao fundo, certamente foi o ápice da performance da banda. E lembrando que a música é single do Quadra, mas que fez o público vibrar aos primeiros acordes. Talvez seja das músicas novas a que mais tenha potencial para virar um clássico e ser lembrada com muito carinho.
Após chegar ao ponto alto da noite, voltamos a receber uma velharia. Dessa vez vindo diretamente do primeiríssimo álbum Morbid Visions (1986). “Troops of Doom” é uma thrasheira pura com status de cult pelos fãs. As músicas dos anos 80 que foram tocadas só evidenciam uma coisa: Se a banda quisesse, eles poderiam tocar muito bem tocar por pelo menos mais uns 20 anos, facilmente. Paulo Jr. e Andreas estão com seus 50 e tantos anos, mas a tranquilidade que eles tocam músicas como “Troops of Doom” é admirável e inspirador. Isso mostra que realmente a decisão por se despedir dos palcos é uma uma escolha e não uma necessidade.
Do poderoso e saudoso Beneath the Remains (1989) vem “Inner Self” para lhe representar. Assim como as outras músicas oitentistas, a velocidade e agressividade é o fator principal. Aqui certamente tivemos a maior roda da noite, impossível alguma outra música incendiar tanto o público como “Inner Self”. Aqui tivemos uma bela recordação nos telões, onde se passavam todas as capas de seus álbuns e alguns posters antigos. Ali o gostinho amargo da despedida começava a aflorar pelo público. Tanto que após alguns moshs e gigantescos walls of death feitos nessa música, nas últimas rodas até parecia que surgiria uma briga no meio da galera. Um sujeito se atracou no pescoço do outro, mas quase que imediatamente a razão falou alto sobre suas mentes e viram que ali não seria local pra isso, afinal, por mais que uma roda de show seja algo que pareça brutal e violento, aquilo não passa de uma brincadeira, é a forma única que usamos para expressar nosso contagio por esse som que muitas vezes é incompreensível pelos outros. E ainda bem que não teve briga, pois uma apresentação memorável, celebrando sua história através do fim, não merecia ser manchada desse jeito. Afinal, quem não sabe brincar, não entra na brincadeira.
Finalmente, e infelizmente para tantos, “Arise” chegava para dizer a todos que a celebração estava chegando próximo de seu fim. A música de álbum do mesmo nome, lançado em 25 de março de 1991 (apenas 6 dias mais novo que esse estimado plumitivo quem vos escreve) é o primeiro grande hit do Sepultura, não haveria música melhor para fechar o set antes do encore. E se em algum momento foi falado sobre o maior mosh do show, aqui já se perdeu completamente o parâmetro, pois daqui em diante toda roda era a maior roda de todas. As paredes já estavam quentes, como se literalmente estivessem em chamas, nada mais segurava a emoção evidente de todos. Banda e plateia estavam em total sintonia e cumplicidade.
E assim como um tornado, eles se retiram para o encore, só pra ouvir o povo clamando por mais. Afinal, ainda faltava um hino a ser tocado. Um hino que toda casa de show coloca pra tocar enquanto se espera por um artista do meio do rock/metal, onde todos cantam em coro. São pouquíssimas músicas que causam esse barulho todo. Ela ainda estava por vir.
Foto: @paulo.o.borges da @tocaculturalcuritiba
Após voltarem para o palco, “Ratamahatta” é executado. O último single com Max, com participações de Carlinhos Brown e David Silveira (Korn) em estúdio, é só um prelúdio para a música final. Todos cantam, todos pulam, mas todos estão esperando o gran finale.
E é chegada a hora de se despedir da última apresentação da banda mineira em nosso solo paranaense. Já não tem mais rodas. O público agora é uma só unidade. Todos pulam em harmonia e gritam freneticamente o refrão de “Roots Bloody Roots”, o hino tombado como patrimônio nacional que todos aguardavam, veio do último álbum com Max em 1996, o prestigiado Roots. A alegria contagiosa do público foi simplesmente a melhor cena de toda a apresentação, digno de roubar toda a atenção das câmeras de celulares dos presentes no mezanino que tinham como intenção a de filmar o quarteto em cima do palco. “Roots Bloody Roots” chegou, e com a violência que veio, se encerrou, e com ela junto o final do show.
Despedidas foram feitas, agradecimentos e fotos também. O público foi ficando orfão a medida em que cada um dos membros foi se retirando do palco após presentear com palhetas e baquetas. Após o palco ficar vazio, o público presente, que deu sold out para essa apresentação, precisou de uns minutos para assimilar a história que acabara de presenciar. Afinal, são 40 anos de história, 15 álbuns de estúdio, influência para todas as bandas de metal que vieram dos anos 90 pra frente. Começaram no Death Metal, foram pro Thrash Metal, são precursores do Groove Metal, serviram como base para o Nu Metal. Passaram nomes como Max, Jairo, Iggor e Dolabella. Revelou meninos prodígios como Andreas Kisser e Eloy Casagrande. Derrick Green, a grande surpresa. Greyson Nekrutman, a nova surpresa. E Paulo Jr, sempre presente. Todos com suas importâncias, contribuíram nessa gigantesca história. Seja na origem ou seja no seu fim.
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A banda ainda terá uma leg da turnê na América Latina e na Europa será a parte final. Porém, assim como fez o Slayer, que anunciou sua despedida em 2019 mas voltará aos palcos ainda esse ano, acredito que o Sepultura siga esse mesmo caminho. Talvez não façam mais turnês e até não saia álbuns novos, mas um ou outro show pontual ou em um grande festival é provável que aconteça ainda, mas independente de como for, em nosso querido solo foi praticamente sacramentado sua última passagem nesse dia. Sorte de quem veio, pois presenciou um show memorável, digno de sua história. O orgulho de milhares de brasileiros. O Sepultura do Brasil!
Setlist
1. Intro (Polícia)
2.Refuse/Resist
3.Territory
4. Slave New World
5. Phantom Self
6. Dusted
7. Attitude
8. Kairos
9. Means to an end
10. Cut Throat
11. Guardians of Earth
12. Mind War
13. False
14. Choke
15. Escape to the Void
16. Kaiowas
17. Sepulnation
18. Biotech is Godzilla
19. Agony of Defea
20. Troops of Doom
21. Inner Self
22. Arise
23. Ratamahatta
24. Roots Bloody Roots
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