Paul McCartney: deem logo um CPF pra ele!
- Mayer Soares
- 16 de out. de 2024
- 6 min de leitura
“E aí, o show foi bom?” Essa pergunta não tem vez quando falamos de Paul McCartney. Estamos falando de uma pessoa com mais de 82 anos de idade, que, junto com seus três amigos, fundou o que conhecemos sobre música. Os Beatles inventaram tudo? Claro que não. É um exagero dito repetidas vezes pelos seus fãs mais chatos. Mas é inegável a porta que eles abriram. Como diz meu grande amigo Alcimar: “Os Beatles terminaram para que todo mundo pudesse começar”.
Uma banda que quebrou barreiras musicais. Expandiu o experimentalismo. Fez com que a complexidade dos arranjos chegasse ao Top 1 do mercado musical. Fez da música psicodélica algo mainstream. Tornou o erudito popular. E levou o popular para o erudito. Valorizou o disco para ser ouvido inteiro. Uma banda com compositores de verdade, que nada dependiam de terceirizados. (Sim, apontei o dedo para diversos artistas número 1 de nossos dias.)
Então, falar do show de Paul McCartney sem levar em conta toda a bagagem histórica é um erro. Ele está cansado? Sim. Algumas músicas estão mais lentas? Estão, sim. Os tons foram trocados algumas vezes para ajudar no alcance vocal? Sem dúvida. Mas isso não importa. É um fucking Beatle vivo! E segurando uma multidão por quase três horas sem parar, disparando quase 40 hits um atrás do outro. E, de quebra, falando em português com todo seu jeito brincalhão, fazendo uso de gírias locais, que são um charme. O escritor deste artigo se emociona quando ele olha para o público e larga um: “E aí, meu?”
Eu poderia aqui citar música por música do setlist escolhido, porém Paul é um cara que pode montar cinco ou seis sets diferentes para cada show, com tranquilidade. Só da banda que ele fez parte, são 27 números um nas paradas de sucesso internacionais, fora os infindáveis lados B, que passam com muita folga no gosto popular e são as grandes surpresas da noite. Estamos falando de um cara que pode decidir não tocar Yesterday no show. Sim, ele não apresentou a música mais tocada da história. Por quê? Porque ele pode fazer isso, e a gente nem liga.

A Hard Day's Night é a explosão sessentista que faz o estádio flutuar logo na primeira canção. (A música toda é um refrão!). Paul larga o riff de Day Tripper e o estádio vai abaixo! Blackbird é a hora do estádio em silêncio para ouvir uma reza, uma reverência. É o momento sagrado. Maybe I’m Amazed é a hora em que o céu se abre. O que dizer de Jet? Um tapão para quem diz que Sir Paul não domina um rock de arena. Live and Let Die e suas explosões literais, que vizinho nenhum do estádio se atreve a reclamar do som alto. Lei do silêncio não existe quando Paul está passando. Até quando Ob-La-Di, Ob-La-Da é tocada – e eu odeio essa música – eu não consigo não cantar o refrão.
Mas existem momentos que são tão catárticos que preciso de mais espaço para falar sobre eles. Quando Paul toca Here Today, música que ele compôs para Lennon após sua morte, é impossível não imaginar que Lennon está presente. Até um ateu pensaria isso. Soa quase como um pedido de perdão pelos anos seguintes ao fim da banda, quando os dois atacavam um ao outro através de letras de música (muito mais legal isso do que fazer textão na internet). Um apelo para que este não partisse tão cedo e cheio de novos planos.

E é claro que, após isso, vem um dos grandes momentos. Paul volta ao piano e presenteia a todos com Now and Then. Embora a turnê esteja rolando desde o ano passado, foi só agora que Paul a incluiu no set. Para entender o quanto essa música emociona, voltemos ao ano de 1995. Quando o projeto Anthology surgiu, Free as a Bird e Real Love nos foram dadas como um presente do além. Paul, George e Ringo trabalharam em duas músicas inacabadas de Lennon e criaram duas das mais lindas dos anos 90.
Mas havia uma lenda urbana. Anthology era composto por três compilações. Free as a Bird saiu na primeira. Real Love, na segunda. E a terceira? O que teríamos? Haviam histórias circulando numa época em que não existiam redes sociais. Quase ninguém tinha internet, e tudo que sabíamos vinha de fã-clubes e suas fontes duvidosas. Havia uma terceira canção chamada Now and Then. Mas, por motivos não muito claros, não rolou a gravação. Diziam que a fita estava ruim ou que George havia odiado o material. A gente não sabia o que era verdade ou não. Quando o YouTube chegou, a canção original surgiu em perfis de pirataria, e a gente pôde ouvir Lennon cantar Now and Then, mas sem a produção dos demais. O boato ganhou força nos anos seguintes. Quando foi anunciado que ela seria enfim lançada, o mundo veio abaixo.

Uma banda que acabou 54 anos atrás conseguindo ser número 1 novamente. É assombroso pensar nisso. E Paul presentear os fãs com isso ao vivo é estupendo.
E quem conhece a história entre John e Paul se emociona ainda mais: “Now and then” foi a última coisa que Lennon disse para Paul em seu último encontro. John disse: “Think of me every now and then, old friend” (Pense em mim de vez em quando, velho amigo).
Chorou? Eu também.
Como se não bastasse toda a emoção disso, vem Paul e larga um dueto virtual com Lennon em I've Got a Feeling. Aparecer o rosto de John no telão, cantando junto com Paul… chorou de novo? Eu também. Pensa nisso: a última vez que John esteve presente numa apresentação ao vivo em um estádio foi em 1974. De lá pra cá, sua voz nunca mais foi ouvida ecoando em uma plateia. Poder ouvir sua voz, cristalina, é um privilégio. Único. O Allianz Arena veio abaixo de novo, e já perdi as contas. Paul sabe que Lennon é o Beatle preferido da maioria dos fãs. E ele não se importa com isso. Não tem medo de pôr seu amigo acima dele. Paul estava feliz. E a gente, feliz com ele. Muito!
Há momentos no show que eu, particularmente, não gosto. Por exemplo, acho Something com introdução no ukulele uma coisa bem chata. George merecia mais carinho com sua música, que bate de frente com a dupla facilmente. Felizmente, a parte do ukulele é rápida. E o respiro no meio da gig, tocando as músicas dos primórdios, era um respiro que eu não via a hora de acabar. Eu queria pular do chão de novo. Felizmente, seguido a isso, vieram Band on the Run, Lady Madonna, Get Back, e assim o show toma o rumo correto. Após quase três horas de concerto, Paul ainda tem fôlego para cantar Helter Skelter igual a um jovem. E ele berra. Berra muito. Como a música pede. Depois dessa, é claro que a gente deixa o Paul ir embora. Mas antes, ele vem com a trinca final de Abbey Road. E assim, Paul vai dando “até logo” pra nós mais uma vez. A gig termina com a sensação de que viver vale muito a pena. De que é um privilégio poder viver na mesma época em que essas músicas ainda repercutem. Poder estar vivo enquanto ainda temos dois Beatles vivos. (Quisera eu uma última dança com Ringo junto a ele numa turnê de despedida. Sonhar é de graça). E é bonito ver um estádio completamente lotado com gente tão jovem, misturada com gente que vivenciou os anos 60. A música dos Beatles é eterna. E o que se vê num show de Paul McCartney é a prova disso, indiscutível. E aí, o show foi bom? Sempre será, mesmo que Paul só apareça para dar um alô.
Deem logo um cartão do SUS e um CPF para ele, pois Paul já é brasileiro!
Setlist de 15/10:
Hard Days Night
Juniors Farm
Letting Go
Drive My Car
Got To Get You Into My Life
Come On To Me
Let Me Roll It
Getting Better
Let Em In
My Valentine
1985
Maybe I’m Amazed
I’ve Just Seen A Face
In Spite Of All The Danger
Love Me Do
Dance Tonight
Blackbird
Here Today
Now And Then
New
Lady Madonna
Jet
Mr Kite
Something
Obla Di Obla Da
Band on the Run
Get Back
Let It Be
Live and Let Die
Hey Jude
I’ve Got A Feeling
Birthday
Sgt Pepper reprise/Helter Skelter
Golden Slumbers
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